02/11/2010

A DIMENSÃO MÍSTICA DA ARQUITETURA - Como mestres-construtores da antiguidade concebiam a profissão como prática iniciática religiosa.


"(...) A visão transformou-se, mas a impressão permanece. E se o costume modificou o caráter marcante e enternecedor do primeiro contato, jamais pudemos evitar uma espécie de arrebatamento diante desses belos livros de imagens erguidos em nossos adros e que estendem até o céu suas páginas de pedras esculpidas."
Fulcanelli. Em O mistério das catedrais.
O Homem Vitruviano, por Leonardo Da Vinci.
Desde que a grande separação das artes tornou-se uma realidade (quando filosofia, ciência e religião deixaram de compor o corpus filosoficum da antiguidade), o arquiteto se dedica a sua profissão de acordo com o materialismo científico iluminista. Embora muitos arquitetos do Renascimento à modernidade tivessem fortes tendências místicas e religiosas, como Bruneleschi, Da Vinci, Gaudí e Louis Kahn, por exemplo, eles aprenderam a conceber suas obras unicamente somente sob o ponto de vista da técnica. A filosofia e a religiosidade são coisas com importância totalmente secundárias. Mas, se voltarmos um pouco na história, veremos que os arquitetos da antiguidade desde sua formação aprendiam a conceber as obras sob o signo das relações entre Homem e Divindade, ou melhor, sob uma concepção mística de evolução do gênero humano (precisamos levar em conta que suas influências perduraram ocultamente até os finais do neo-classissismo). Isso pode parecer místico, metafórico ou poético, mas a realidade é que houve um momento em que a arquitetura foi acima de tudo uma profissão iniciática: os mestres-construtores não eram mestres pelo simples fato de mostrarem "experiência" com as obras, mas por possuírem uma relação de discipulado (ensino e aprendizagem) com os futuros arquitetos-construtores em formação. A arquitetura antiga e medieval foi totalmente influenciada por tais relações, tendo nas corporações de construtores medievais sua mais difundida instituição. Os mestres-arquitetos praticavam a profissão de duas maneiras:
1 - Como profissionais liberais contratados para edificar;
2 - Como mestres espirituais incumbidos da responsabilidade de formar seus discipulos na Arte da Construção (deste conceito originou-se a Maçonaria).
Essa "Arte da Construção" deve ser compreendida como a arte de edificar propriamente dita, e também, a arte que representa a capacidade humana de construir uma nova mentalidade, uma nova concepção de vida baseada em um conceito de evolução do espírito humano em direção à Divindade. Esse conceito de "construção" representaria os processos utilizados num tipo especial de iniciação espiritual.
No que segue tentarei esclarecer alguns aspectos da filosofia da iniciação em sua manifestação na arquitetura.
Pitágoras
A influência do pensamento pitagórico norteou a produção arquitetônica por muitos séculos, da antiguidade grega ao neoclassissismo norte-americano. Manifestou-se claramente no modernismo, e é aplicado na contemporaneidade. Esta influência se tornou uma relação limitada à forma, perdendo com isso seu caráter iniciático que outrora existiu nas guildas de arquitetos. Os números e as formas geométricas são os elementos formadores da universalidade das coisas, pois é através deles que o Criador inicia seu plano de concepção do mundo. Tal crença fez com que a arte da construção, isto é, a arquitetura, fosse estudada e ensinada como uma prática que, de baixo pra cima, imitava a criação divina.
Geometria Sagrada: o Vesica Piscis e a Seção Áurea.
A ciência mais importante do corpus filosoficum dos arquitetos da antiguidade foi a Geometria. Porém, em seu aspecto iniciático ela se manifestou como um sistema gráfico que procurava representar a criação do mundo e suas leis na matéria, principalmente no que dis respeito às leis que governam o estado de formação das coisas (morphosis). Essa característica da geometria se denomina Geometria Sagrada. Os elementos mais importantes da geometria sagrada são o Vesica Piscis e a Seção Áurea (ou razão áurea). O Vesica Piscis é a forma geométrica gerada pela intersecção de dois círculos de mesmo raio, em que o centro de cada circunferência está sobre a outra. Parece ter influenciado a concepção gráfica do mundo antigo, e também o desenvolvimento dos arcos da arquitetura gótica. A Seção Áurea é na verdade uma relação numérica, e não uma forma geométrica, mas, por ser a base de todos os sistemas de proporções das artes antigas e até mesmo modernas, suas aplicações se referem sempre a um esquema geométrico, principalmente no que diz respeito a um sistema de proporção. Os construtores medievais utilizavam freqüentemente o Vesica Piscis e a Seção Áurea nos seus projetos. E por toda arquitetura religiosa da idade média é possível determinar suas aplicações. Durante o Renascimento foram largamente utilizados por artistas e arquitetos como Leonardo Da Vinci, Bruneleschi e Bramante.

Vitruvius
Marcus Vitruvius Pollio foi o grande arquiteto romano do período pré-medieval (isto é, o período que finda cronologicamente a antiguidade). Viveu no século I d.C e seu livro De Architectura foi largamente utilizado como fonte de pesquisa pelos arquitetos e teóricos do Renascimento. O período medieval parece não ter utilizado Vitruvius em seu corpo teórico, pelo menos não durante o desenvolvimento da arquitetura gótica, de arcos ogivais, que não existem nas concepções vitruvianas.
Vitruvius parece ter sido um arquiteto cuja excelência marcou profundamente a prática de arquitetura na cultura romana. Porém parece não ter tido nenhuma relação com as concepções "iniciáticas" da prática de arquitetura tal como fora predominante no período medieval, marcada pela influência dos mestres-construtores, suas corporações e discípulos. Mas Vitruvius certamente foi utilizado pelos mestres-construtores do período românico, cuja característica estrutural e estética ainda é fortemente baseada na basílica romana com seus arcos de volta perfeita (esses sim mencionados por Vitruvius).
As corporações medievais de Mestres-Construtores.
A cultura medieval baseada nas corporações e guildas de artes e ofícios foi fundamental para o desenvolvimento de vários tipos de concepções estéticas e inovações tecnológicas da Idade Média. Mas o seu caráter iniciático se desenvolve e se consolida ao mesmo tempo em que crescem as pressões da Igreja de Roma sobre as diversas seitas cristãs que se tornavam cada vez mais freqüentes por toda cristandade européia. Na verdade essa cultura de refugiar-se em guildas de artes e ofícios não é uma invenção cristã-européia. Esse modelo é muito mais antigo do que parece, e no Oriente Médio, particularmente em meio às corporações sufistas de conhecimento e sabedoria, a exigência que submetia diversos discípulos a esse modelo de auto proteção era uma forma que os grupos místicos encontraram para evitar a perseguição das igrejas e seus sacerdotes.
Na cristandade européia medieval, muitos mestres-construtores eram maçons, como Robert de Luzarches, Jean Le Loup, Hugues Libergier e Villard de Honnecourt (este de elevado conhecimento e erudição entre os seus pares da época, autor do "Livro da Corporação dos Mestres-Pedreiros" em cerca de 1235).
A presença desses mestres e seu elevado conhecimento ficou na obscuridade por todo o período da história da arte compreendida entre o renascimento e o século 19, onde o interesse de arquitetos, artistas e historiadores se voltou cada vez mais para o período medieval, especialmente na manifestação da arquitetura gótica.
O fim das corporações de construtores medievais coincidiu com o surgimento da maçonaria especulativa, que já não era formada por membros arquitetos e artistas construtores (maçonaria operante), mas por médicos, juristas e outros profissionais liberais. A maçonaria especulativa manteve diversos símbolos e instrumentos da maçonaria operante medieval, porém apenas como elemento litúrgico do culto iniciático (rito) e não mais como prática profissional. Na verdade a manutenção dos símbolos dos mestres-construtores medievais pela maçonaria especulativa é um fato que pode ser explicado pela existência desse sentido místico e iniciático paralelo às práticas profissionais dos arquitetos da antiguidade. As relações entre mestres-construtores e seus discípulos foram responsáveis não apenas pela ciência responsável pelo surgimento dos arcos ogivais e abóbadas nervuradas da arquitetura gótica, mas também por uma riquíssima cultura simbólica que percorreria toda a história da humanidade, manifestando-se, secretamente ou não, em sociedades religiosas como a maçonaria e a rosacruz europeias.

Sugestão de leitura:
Geometria Sagrada, Nigel Pennick. Editora Pensamento.
O Mistério das Catedrais, Fulcanelli. Editora Madras.
Pitágoras - Ciência e magia na antiga Grécia, Carlos Basilio Conte. Editora Madras.
A Conspiração Ocultista, Michael Howard. Editora Campus.
O Poder dos Limites - Harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura, Gyorgy Doczi. Editora Mercuryo.
Arquitetura Gótica e Escolástica, Erwin Panofsky. Editora Martins Fontes.

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