09/08/2008

O COLISEU E O NINHO DO PÁSSARO

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"Quando uma cultura evolui, ela gradativamente abandona o uso do ornamento de objetos utilitários"
Adolf Loos, Ornamento e Crime, 1908.



Alguém aqui certamente deve conhecer o Coliseu. Um estádio, uma arena, um templo da violência e da disputa entre dois ou mais indivíduos (o valor lúdico do ato de matar institucionalizado). O Coliseu foi a principal obra de Roma em toda Europa e, em seu tempo, figurou como um símbolo do poder e da hegemonia da cultura e da força militar do estado romano.
Essa arena possui uma arquitetura espetacular. Uma arquitetura monumental e colossal, sob o peso da harmonia clássica, repleta de pórticos e pilares perfeitamente executados segundo as três ordens clássicas (Dórico, Jônico e Coríntio). Foi projetado e executado com maestria pelos arquitetos do Colegivm Romano, orientados pelo “divino” Vespasiano, que o começou por volta do ano 70 d.C. (curiosamente no mesmo ano em que o Grande Templo fora destruído em Jerusalém).
A construção do Coliseu deve ter custado milhares de vidas, tanto romanas, quanto escravas. Uma obra dessa envergadura não poderia ser levada a cabo sem as fortunas de guerra (tomadas dos povos conquistados) e sem a abundante mão-de-obra escrava. Imagino os impostos repassados aos cidadãos romanos para custear essa construção. Imagino jovens fortes, escravos, arrancados de suas famílias pra trabalhar sem dignidade alguma até morrerem de cansaço ou doença no canteiro de obra. Fico imaginando os nobres romanos se divertindo com a dispersão intelectual do povo diante da barbárie. Pão e circo. Ah, mas Roma era poderosa e culta! Quem poderia questionar tal empreendimento?
Os arquitetos sempre estiveram à disposição do estado. Sempre estivemos prontos pra realizar os sonhos de poder e glória dos homens e das suas nações! O velho lema “Realize seus sonhos: contrate um arquiteto!” jamais deixou e nunca deixará de ser apropriado. Quando um homem ou uma nação quer mostrar o seu poder, ele chama os seus arquitetos! Somos escravos do sonho de poder. Nossa arte, perfeitamente técnico-científica, realiza não somente o sonho do “belo”, mas também, o do “implacável” e do “colossal”. Mas, nenhum arquiteto ou construtor qualquer, mesmo um mago-egípcio, consegue construir uma obra somente com o poder do pensamento. Toda obra colossal exige matéria e muitos recursos, pra não dizer muito dinheiro, afim de que seja realizada sua execução. Quanto mais dinheiro, mais rápido uma obra acaba. Quanto mais dinheiro, mais bela uma obra poderá ser. De onde vem esse dinheiro?
Nas bases do Coliseu, sob o solo, estão as estruturas necessárias pro equilíbrio do edifício. Logo acima, as primeiras fiadas de pórticos e colunatas da ordem Dórica. As três camadas (e, por conseguinte as três ordens) podem facilmente representar os três tipos de poder: o “divino” (coríntio) – representado pela nobreza real, o religioso (jônico) – que assegura à realeza seu direito de poder religioso acima dos homens comuns e o militar (dórico) – que assegura à realeza seu direito de poder temporal e mantém os cidadãos sob controle direto do Estado. Por estas três camadas estão espalhados os indivíduos mais bem posicionados da sociedade. Abaixo, na estrutura, na base, está toda a “escória”: escravos, camponeses, artesãos e comerciantes livres, prostitutas, artistas de rua, mendigos, crianças abandonadas, analfabetos, ladrões, desempregados e, por fim, os recursos naturais, ou seja, a Natureza. Todos representam a sustentação do conforto das três camadas superiores.
Quer você aceite essa realidade ou não, ela existe. É a estrutura natural da existência humana, algo mesmo instintivo, uma relação onde a estrutura social dominante vive a custa não do seu próprio esforço pessoal, mas da fraqueza de muitos. Quando você pensa “que os fracos morram e que os fortes sobrevivam!”, você está pensando como um líder romano (na verdade essa característica não é particular do estado romano antigo. Toda nação poderosa em sua época age dessa maneira). E todo poder estatal é parasitário.
Toda obra empreendida pelo Estado é feita com dinheiro público. Portanto, com dinheiro do povo (principalmente sob impostos ou outros tipos de contribuições na esfera do trabalho, como orçamentos pra segurança e saúde). Ao povo é dado o direito de fornecer mão-de-obra pra execuções – jovens sadios oriundos de famílias pobres (ou escravas, no contexto antigo), de admirar com perplexidade ou desconfiança a monumentalidade dos edifícios e de pagar pra acessá-los. Sim, pagar.

O classicismo do Coliseu deu elementos estéticos pra vários séculos de arquitetura posteriores. De 70 d.C. até hoje, ainda se constroem edifícios classicistas. O classicismo ainda é o preferido do poder, afinal, existe uma relação direta entre a estrutura de pensamento do Estado e o ideal vitruviano. Não obstante, desde o final do século 19, alguns artistas e arquitetos já demonstraram repulsa ao estilismo e à ornamentação exagerada das artes clássicas.
Adolf Loos foi um precursor. Mais adiante Le Corbusier e a Bauhaus encabeçaram o movimento estético modernista. “A forma segue a função” foi o lema originado dessa postura anti-ornamental. O Movimento Moderno estava consolidado. Porém, o colossal e o implacável jamais deixaram de ser executados: A Torre Eiffel, o Edifício Chrysler, o Palácio do Congresso Nacional em Brasília, a Ópera de Sidney e principalmente estádios olímpicos, por exemplo. Aliás, nenhuma nação gasta tanto com arquitetura monumental, colossal e implacável como quando sedia Jogos Olímpicos! E por que se tem que promover uma arquitetura colossal em jogos olímpicos? Por causa do ideal de poder.
Os Jogos Olímpicos representam o mais sublime no que diz respeito às lutas entre os homens, em que um atleta não representa somente a si mesmo – seus próprios esforços, mas também, a nação que o gerou, que o patrocinou em sua formação atlética. As nações se esforçam, e repassam essa idéia pra cada atleta, para estar sempre uma à frente das outras. Nessa “festa” entre as nações só há luta e ideal de superação. Toda confraternização é artificial e orientada a tornar mais “leve” os processos de luta e rivalidade naturalmente existentes num evento tão grandioso como esse.
Esse ano, diante dos esforços da China pra fazer a maior e mais impressionante olimpíada de todos os tempos, eu comecei a observar mais atentamente as edificações construídas especialmente para os Jogos Olímpicos e para a postura do Estado chinês diante desse evento. Os resultados da minha observação (este fato os tornam especialmente particulares) foram decepcionantes.
Como um país considerado pobre como a China, antidemocrático e comunista, pode realizar a mais grandiosa e impressionante abertura dos Jogos Olímpicos até nossos dias? Respeito... é essa a justificativa de alguns jornalistas como eu ouvi hoje num telejornal. Mas, como uma nação pode adquirir respeito das outras senão pela riqueza e pela dignidade do seu povo? Como uma nação pode adquirir respeito senão, também, pela capacidade bélica? Portanto a China está terrivelmente enganada! Não há respeito por questões de espetáculos. Não existe respeito por questões culturais (o Brasil tem imenso valor cultural, assim como a Pérsia e a Turquia, porém, são nações que gozam de nenhum ou muito pouco respeito internacional).





O Ninho do Pássaro.

Quais as diferenças entre o Coliseu e o Ninho do Pássaro? Quase nenhuma! Você poderia dizer “como não?”. Simples: tanto o Coliseu como o Ninho do Pássaro são obras colossais, monumentais. Tanto o Coliseu quanto o Ninho do Pássaro são arenas. Ambos têm capacidade pra um número muito grande de pessoas. Ambos são construídos pelo Estado. Ambos possuem uma estética que representa o momento cultural de suas nações e representam claramente o nível de investimentos pra sua realização. Ambos são ornamentados: enquanto o Coliseu possui ornamentação clássica, o Ninho do Pássaro possui ornamentação (exagerada por sinal) contemporânea e globalizada: um ornamento-edifício gigantesco. Ambos são um exemplo de alta técnica e perfeição de execução. Ambos exigiram imensa mão-de-obra. Ambos são belos e entraram pra história.
Mas também existem muitas diferenças. O Coliseu foi projetado pelo Colegivm Romano, portanto, fruto da criatividade e cultura romana. O Ninho do Pássaro foi encomendado de um estúdio europeu, portanto, fora do âmbito cultural da China. A que se deve isso? A um país comunista globalizado. Um Estado que chama a comunidade cultural estrangeira pra promover a festa da sua cultura, na verdade com o objetivo de promover o espetáculo global. Nesse contexto, o regional, a herança local, serve apenas de conveniência cultural pra situar um povo sofrido e desesperançoso “à vontade em sua casa”. Um povo aflito pelas catástrofes naturais. Um povo sofrido pela poluição e pela necessidade de manutenção da vida num país superpopuloso. A China é um país pobre... E rico ao mesmo tempo! Assim como o Brasil, assim como o Irã, por exemplo.
Particularmente eu acredito que festas e espetáculos dessa natureza só deveriam ser dignos de países muito ricos, onde a população mais pobre (pelo menos não a pobreza que conhecemos) não tivesse que arcar com boa parte dessas despesas (talvez não imaginemos o quanto de orçamento deva ser redirecionado da educação e da saúde, por exemplo, pra bancar um espetáculo como uma Copa do Mundo num país pobre ou em desenvolvimento).
Mas, no espetáculo das nações, um país em desenvolvimento (portanto, ainda pobre) tem que atrair os olhos do mundo e afirmar claramente: Vejam! Nós temos dinheiro! Vejam que espetáculos podemos vos oferecer. Vejam como nossa nação está unida pra festejar tão importante evento!
Todos sabemos que em países pobres isso tudo é uma máscara. Uma maquiagem que esconde, e sempre esconderá os grandes problemas do país. Mas nessa tolice institucionalizada, a arquitetura tem seu papel assegurado: garantir a emoção do espetáculo! Isso não é nenhuma novidade. Quantas vezes não ouvimos ou lemos que “a construção é pra sustentar, a arquitetura é pra emocionar”? Acredito que a arquitetura deva emocionar sim. Porém, sem excesso. Pois o excesso de emoção está ligado diretamente ao excesso de ornamento. Tomemos como exemplo a arquitetura medieval. Um castelo é o exemplo medieval de arquitetura racional (sim amigos, a forma segue a função desde o mundo antigo). Um castelo não foi feito pra emocionar... Foi feito pra garantir moradia a reis e nobres e pra demonstrar segurança e impenetrabilidade diante das forças inimigas. O contrário da Igreja. A arquitetura das catedrais foi feita pra emocionar. O fiel precisaria atingir o nível psicológico necessário à liturgia e ao ideal de fé. Pra isso, a arquitetura precisa “ajudá-lo”. De fora pra dentro, uma catedral é projetada pra levar à emoção máxima. Isso justifica que a função fundamental de todo ornamento é unicamente tocar o sentimento.
O Estado precisa que sua arquitetura emocione as pessoas. A emoção leva ao estado de torpor da razão. Sem razão não há questionamento.
Quanto mais evoluída uma civilização, mais racional ela se encontra. O ideal do belo toca a emoção em sua imensa fugacidade, pois o belo é fugaz. Mas, todos estão muito preocupados com seus próprios sentimentos. Nossos mais intensos desejos provêm de sentimentos de igual proporção. O mundo definha por excesso de emoção e satisfação.
Uma arquitetura racional surge de um povo igualmente racional. Arquitetura racional forçada gera moda e brevidade. Foi assim com o Movimento Moderno: uma postura racional em uma civilização não preparada pra ela.
O objetivo de tudo que precede é mostrar que o Ninho do Pássaro é tão fugaz quanto o Coliseu. Fruto de uma arquitetura extremamente ornamentada (ainda vejo mais racionalidade no Coliseu, infelizmente superada por sua monumentalidade). A alta tecnologia em função do ornamento! As obliqüidades das linhas que formam a fachada do Ninho do Pássaro levam ao irracional. Levam à emoção diante do caos e do colossal como instrumento de um estado irracional.
Resta-nos saber a que “pássaro” está preparado esse ninho: se o pássaro da paz, ou o pássaro da guerra. Fiquem atentos...



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NOTA: Infelizmente, no dia em que postei esse artigo não tinha conhecimento do lamentável conflito no Cáucaso. Esse fato deixa meu artigo tão verossímil quanto antes. Parece que jamais mudaremos a nossa forma de nos relacionarmos como nações. Será que sempre nossas maiores confraternizações serão em função da guerra, do conflito, da disputa? Infelizmente a Arquitetura não pode fazer nada a não ser reconstruir as coisas destruídas. Mas, como homens, podemos ter a atitude correta. Basta retirarmos toda a emoção desnecessária e abrirmos espaço pro questionamento interior necessário. Aí, estou certo, as coisas mudarão significativamente.

04/08/2008

ARQUITETURA SEM ARQUITETOS

Gostaria de saber por que tudo acontece em Belém a respeito de muitas profissões e áreas de pesquisa...Mas, nada de Arquitetura.
Onde estão nossos simpósios? Onde estão nossos concursos de projetos, nossas mesas redondas, nossas discussões acadêmicas, nossos professores, mestres e nossos melhores profissionais?
Será que todos estamos esperando algum trabalho? Ou será que estamos esperando a mensão do nosso nome em alguma coluna social ou em algum outdoor dizendo que ganhamos algum prêmio de arquitetos do ano?
Onde está a Arquitetura? Em toda parte! E onde estão nossos arquitetos? Em parte alguma!
Nossa cidade vive vazia da atuação dos seus arquitetos. Alguns talvez acreditem que arquitetura somente se faz no estúdio, que sem trabalho não há arquitetura, que sem a obra não há arquitetos e que sem o contrato não existe profissão. Talvez essa postura imediatista diante da nossa tão valiosa arte sirva pra alguns justificarem seu isolamento, sua improdutividade diante da Cultura Arquitetônica e sua inutilidade diante da história.
Arquitetura também se faz no seio da vida citadina. No meio do povo, chamando especialistas e leigos pra observação da Grande Arte ( a Grande Arte definitivamente jamais será o cinema)!
Um dia desses, encontrei com o George Venturieri numa vernissage na galeria Teodoro Braga. Estavamos conversando muito sobre arquitetura e design. Nessa conversa surgiu a idéia de visitarmos o Branco de Mello e o professor Milton Monte. Disse-me que o Mestre Milton se queixava de "abandono". Mas talvez o abandono que o professor Monte tenha se queixado não seja o mero abandono das pessoas e do mundo. Creio que o professor se encontrava abandonado pela arquitetura, melhor dizendo, por uma vida socio-cultural de arquitetura!
Acho perfeitamente normal um arquiteto e construtor com o Milton Monte estar com poucos projetos. Quanto a isso, ninguém escapa. Só acho ridículo o professor Monte não ter um simpósio de arquitetura, uma mesa redonda, uma exposição na qual possa ser dignamente homenageado, ou na qual seja chamado e incitado a fazer uma explanação da sua experiência e do seu amor a Grande Arte!
Numa cidade onde nada acontece que estimule a prática inteligente de arquitetura, normal arquitetos veteranos e de idade avançada encontrarem-se esquecidos.
Faço-vos aqui um apelo:
Que tal realizar algo que movimente a Grande Arte em nossa cidade?
Vamos criar um modo de tornar nossa ciência admirada pela sociedade que nos formou. Vamos dar-nos a nós mesmos a felicidade de sermos arquitetos num contexto favorável e de poder, com isso, resgatar a importância que a Arquitetura tem na vida de cada um de nós.
Oro pela felicidade do mestre Milton. Não pela felicidade dele entre filhos, parentes, amigos, que concerteza ele deve possuir, mas oro pela sua e pela nossa felicidade no meio arquitetônico!
Que assim seja!